Reflexões sobre as Águas, Tom Zé, Lavadeirinhas-Clevane Pessoa
Ilustração:
Parte de uma das várias ilustrações da autora (Clevane Pessoa)para seu cordel Lavadeirinhas.
Terça-feira, 9 de Outubro de 2007
Reflexões sobre as Águas, Tom Zé, lavadeirinhas
(Pubicado originalmente em na revista eletrônica Telescópio, por Everi Carrara e em meu blog http://clevanepessoa.blogspot.com/2007/10/reflexes-sobre-as-guas-tom-z.html
Tom Zé:página: www.rockconcerts.it/artisti/concerti
"REFLEXÕES SOBRE AS ÁGUAS, AS LAVADEIRAS E ASSUNTOS AO REDOR...
Clevane Lopes *
Tom Zé(***), ontem, numa entrevista, contou de seu impacto imagético ao deparar com as lavadeiras em sua terra; roupas de todas as cores, estendidas numa grama bem verde e as vozes a cantar, por exemplo, “Meu Limão, meu Limoeiro”. Com aquele sorriso maroto, mas comovido, Tom diz que elas faziam segundas vozes paralelas - e vai enumerando: terceiras, quartas... sextas vozes, enquanto falseteia os versos da canção, a imitar as lavadeirinhas.
Venho ao computador e aviso Everi Carrara, que adora Tom Zé e fez, em seu Jornal Telescópio, uma bela homenagem aos sessenta anos do artista.
Publicou uma poesia que escrevi para esses parabéns merecidos. Veja seu texto:
"TOM ZÉ E OUTROS HERÓIS CONTRA ESSA CIVILIZACIÓN DE PALHA
"Se eu pudesse,inventaria uma máquina contra a burrice" -Tom Zé -
O escritor francês Antonin Artaud dizia: "Encaro a vida como homem livre; livre, ou seja, que jamais se deixou acorrentar". Sentia-se incomodado por essa "civilização de palha", européia e burguesa. Ele exilou-se voluntariamente no México, entre os povos indígenas,nas primeiras décadas do século vinte.
Outros artistas de gênio e poder de indignação perante a barbárie, procuraram também se desvencilhar dessa civilização que insiste em escravizar e/ou conduzir artistas e nações inteiras sob diversas e repetidas formas monopolizadoras. Eu sempre penso em TOM ZÉ, o compositor baiano mais emblemático do período Tropicalistas e pós-Tropicalista,o qual nunca se deixou conduzir pelos modismos e a falação propagandista oficial. TOM ZÉ passou por sérias dificuldades e obscurantismo. Mas e daí? Ele assim como outros raros talentos é um compositor livre,de formação musical erudita,cuja erudição deve ter lhe concedido tantos benefícios quanto o fraseado melódico das cancões das lavadeiras de Irará,no interior da Bahia. Eu intuo que o exílio de TOM ZÉ é para dentro, para a intemporalidade arqueológica de sua infância,quem sabe. Do mesmo modo como o poeta Rilke se referia á infância, sendo o único verdadeiro país para o poeta.TOM ZÉ disse desejar reconstruir essas melodias que ouviu nos tempos de criança, promovendo uma espécie imaginária e fértil de arrastão estético na cabeça. E eu leio algumas de suas entrevistas, pressentindo que sua aguda visão musical se redimensiona para as questões de natureza política, fora do contexto convencional - todavia, como um estudo, uma nova perspectiva de análise para confrontar - se perante a burrice e as injustiças sociais que nos cercam. Algo assim como o surgimento de um povo novo, que reunisse esse sincretismo revolucionário genuinamente brasileiro e globalizado de baixo para cima, misturando negros, brancos e índios -só para lembrar o saudoso Darcy Ribeiro. Eu intuo que a música de TOM ZÉ é simultâneamente invenção poética e desconstrução arquitetônica, do modo como fala o Niemeyer. Uma música que não é retilínea, é cheia de curvas e rítmos constragedoramente simples e bem-humorada. Sou daqueles que acreditam no poder dissociativo do riso para aniquilar essa globarbarização reinante.
EVERI RUDINEI CARRARA: músico, escritor, editor, professor de tai chi chuan,
cujo site é http://www.telescopio.vze.com.
Mas, de retorno às lavadeiras, percebe-se o fascínio que elas causam nos nos artistas. Muitos renomados, por exemplo, Gauguin, as pintaram. Muitos anônimos, em todos os países, e, no Brasil, em todas as cidades por onde passa um rio, também.
E elas cantam. Quase uma tradição.
Em Belo Horizonte, as alegres profissionais, apresentam-se acompanhadas do Carlos Farias, poeta e violonista, que as empoderou e divulgou, gravou com elas Cds, como o lindo”Aqua” e de vários outros artistas.
Qual a mágica? A água representa o movimento, a vida. Em última instância, o líquido amniótico, onde nadamos e nos nutrimos in útero. Nada que fica para trás é capaz de prendê-las. Odilo Costa, filho (*), revela, num verso: ”tudo cede à força das águas”... A velha marchinha brasileira diz “a água lava, lava lava tudo/a água só não lava, a língua desta gente” - para as comunidades ribeirinhas, se os rios são piscosos, ninguém passa fome.Se há água, ninguém fica com a roupa suja... Oriundas de época sem que não havia máquinas de lavá-las, as mulheres se unem, porque uma protege a outra, e formam um grupo. E cantam e cantam...
Nas regiões mais pobres, nunca, hão, talvez, de possuir uma lavadora. Mas suas mãos esfregarão onde for preciso.
O ditado “roupa suja se lava em casa”, talvez tenha nascido, porque as fofoqueiras de plantão, ali deságuam todos os fuxicos e intrigas... à força de não querer sua vida pessoal levada à beira do rio, espera-se que a descrição dos mal-estares domésticos, amorosos, profissionais, não saiam das “quatro paredes”...
Pearls, papa da gestalterapia, afirmava sabiamente: ”Não apresse o rio, Ele segue sozinho”... Moldadas por esse “caminho que anda”, essas mulheres que lavam aprendem uma filosofia de vida particular :tudo pode ser limpo. Nada quase é permanente. ”Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”... Se não segurar bem a peça de roupa, ela pode ir embora. Segure, então, e muito bem por analogia, o marido, o filho, o emprego...
E as lendas das águas? O Boto, moço que gosta de dançar e que pode ser responsabilizado por barrigas indesejadas... A Iara, que os gregos conheciam como sereias, contadas por poetas, qual Circe, que seduziu Ulisses, rei de Ítaca, sim, aquele que deixou a Penélope a tecer à sua espera... tecedura que ela desmanchava escondido, para jamais terminar, pois se a concluísse, teria de escolher um marido substituto...
Minha mãe, nos contava a rir: “Havia uma mulher feia que queria casar. Um moço lhe diz que se ela suportar passar a noite dentro do rio, ele com ela casará, mesmo amando outra.
E a megera passa a noite tremendo e dizendo: ”Treme, treme, corpo malvado: hoje estás tremendo e amanhã estás casado”... E o patinho feio se olha no espelho das águas, para verificar que cresceu, virou um príncipe... E Polegarzinha navega no rio sobre uma folha... Narciso, o que não se sabia belo, pois jamais olhara para outra pessoa, ao ver sua imagem no espelho aqualino, apaixona-se perdidamente pela beleza agora vista. E mergulha em busca de si mesmo, para a morte. Ah, quantas histórias, em todos os tempos e em todos os lugares...
Sobre as lavaderinhas, lavandeirinhas, escrevi um cordel:
Lavadeirinhas
Clevane Pessoa Lopes
Para amenizar a lida,
as lavadeiras de Minas
lavam cantando demais
o que lhes vai pela vida...
Rezam louvando a Maria,
cantarolam seus amores,
em coro choram suas dores,
sérias, mostram sua alegria,,,
Nas pedras batem os panos,
às vezes soltam risadas
enquanto dão suas braçadas,
as mesmas de tantos anos...
Às vezes, roupas perseguem,
que lhes fugiram das mãos,
os peixes são seus irmãos
por mais que os peixes o neguem...
Velho Chico, um grande rio,
acostumado às cantigas,
vê nelas grandes amigas,
a ninar seu passadio...
Os passarinhos se intrigam:
de que penas são tais vozes,
cantando lentas, velozes,
que sobre as margens se abrigam?
No Jequitinhonha, do Alto
cantam tanto as de Almenara,
que seu coro, qual jóia rara,
está num CD bem lauto...
Cantavam as ribeirinhas,
em Portugal, no passado,
e ao vir prá cá, com agrado,
trouxeram suas musiquinhas...
Por isso cantam as baianas
quando lavam na Abaeté,
linda lagoa - e com fé,
rezem sagradas, profanas...
Sobre madeira flutuante
- cada mulher tem seu porto
por questão de mais conforto
a cabocla lava expectante:
vigia se o boto aparece,
peixe em moço transformado,
um sedutor encantado
(senão a barriga cresce)...
As roupas brancas clareadas
à luz do sol, clareador,
ficam alvas, sim senhor
e depois serão engomadas...
São lindas as lavadeiras,
em belas coreografias
ensaiadas todos dias,
dançam e cantam faceiras
E esse show, sem ser ensaiado
toca qualquer coração,
pois corpos, braços, sabão,
são um todo sincronizado...
Que cantem sempre, avezinhas:
desaparecem os cansaços
nas canções alegrezinhas
que são seus melhores traços!...
Lave a alma, além do corpo, assim quais as lavadeiras lavam as roupas. Limpeza - é fundamental para que você se sinta melhor...
No momento, elas se apresentam no Palácio das Artes, em belo Horizonte. Uma aventura, sair do norte de Minas e navegar até aqui nas barcas do desejo. Uma epopéia, saírem de seus lugares de origem e, deslumbradas com esse mundão cheio de novidades, elas cantam. E en/cantam.
Belo Horizonte, 17/11/2006
* Escritora e poeta, ilustradora e psicóloga.
***Escrito em 2006:Tom Zé xompletou, neste outubro, 61 anos.
**Página do site Comunidade Mayte.
http://www.comunidademayte.com/Portal/artigos.php?id=1174&idCanal=20
Marcadores: lavadeirinhas-Clevane Pessoa, Reflexões sobre as Águas, Tom Zé