terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Sandra Cavalcanti-POBRES ALUNOS- BRANCOS E POBRES


Quando a rememória traz consigo a experiência de vida, pode-se realmente confiar em opiniões emitidas, abalizadas pela ponderação ,argamassadas na maturudade e na idéia amadurecida e consistente.
Recomendo esse texto!

Clevane Pessoa de Araújo Lopes


POBRES ALUNOS, BRANCOS E POBRES...
Sandra Cavalcanti

FOLHA SP, Segunda-feira, 29 dezembro de 2008

Entre as lembranças de minha vida, destaco a alegria de lecionar
Português e Literatura no Instituto de Educação, no Rio. Começávamos
nossa lida, pontualmente, às 7h15. Sala cheia, as alunas de blusa
branca engomada, saia azul, cabelos arrumados. Eram jovens de todas
as camadas. Filhas de profissionais liberais, de militares, de
professores, de empresários, de modestíssimos comerciários e
bancários.

Elas compunham um quadro muito equilibrado. Negras, mulatas, bem
escuras ou claras, judias, filhas de libaneses e turcos, algumas com
ascendência japonesa e várias nortistas com a inconfundível mistura
de sangue indígena. As brancas também eram diferentes. Umas tinham
ares lusos, outras pareciam italianas. Enfim, um pequeno Brasil em
cada sala.

Todas estavam ali por mérito! O concurso para entrar no Instituto de
Educação era famoso pelo rigor e pelo alto nível de exigências. Na
verdade, era um concurso para a carreira de magistério do primeiro
grau, com nomeação garantida ao fim dos sete anos.

Nunca, jamais, em qualquer tempo, alguma delas teve esse direito,
conseguido por mérito, contestado por conta da cor de sua pele! Essa
estapafúrdia discriminação nunca passou pela cabeça de nenhum
político, nem mesmo quando o País viveu os difíceis tempos do governo
autoritário.

Estes dias compareci aos festejos de uma de minhas turmas, numa linda
missa na antiga Sé, já completamente restaurada e deslumbrante. Eram
os 50 anos da formatura delas! Lá estavam as minhas normalistas,
agora alegres senhoras, muitas vovós, algumas aposentadas, outras
ainda não. Lá estavam elas, muito felizes. Lindas mulatas de olhos
verdes. Brancas de cabelos pintados de louro.

Negras elegantérrimas, esguias e belas. Judias com aquele ruivo
típico. E as nortistas, com seu jeito de índias. Na minha opinião, as
mais bem conservadas. Lá pelas tantas, a conversa recaiu sobre essa
escandalosa mania de cotas raciais. Todas contra! Como experimentadas
professoras, fizeram a análise certa. Estabelecer igualdade com base
na cor da pele? A raiz do problema é bem outra. Onde é que já se viu
isso? Se melhorassem de fato as condições de trabalho do ensino de
primeiro e segundo graus na rede pública, ninguém estaria pleiteando
esse absurdo.

Uma das minhas alunas hoje é titular na Uerj. Outra é desembargadora.
Várias são ainda diretoras de escola. Duas promotoras. As cores,
muitas. As brancas não parecem arianas. Nem se pode dizer que todas
as mulatas são negras. Afinal, o Brasil é assim. A nossa mestiçagem
aconteceu. O País não tem dialetos, falamos todos a mesma língua. Não
há repressão religiosa. A Constituição determina que todos são iguais
perante a lei, sem distinção de nenhuma natureza! Portanto, é
inconstitucional querer separar brasileiros pela cor da pele. Isso é
racismo! E racismo é crime inafiançável e imprescritível. Perguntei:
qual é o problema, então? É simples, mas é difícil.

A população pobre do País não está tendo governos capazes de diminuir
a distância econômica entre ela e os mais ricos. Com isso se instala
a desigualdade na hora da largada. Os mais ricos estudam em colégios
particulares caros. Fazem cursinhos caros. Passam nos vestibulares
para as universidades públicas e estudam de graça, isto é, à custa
dos impostos pagos pelos brasileiros, ricos e pobres. Os mais pobres
estudam em escolas públicas, sempre tratadas como investimentos
secundários, mal instaladas, mal equipadas, malcuidadas, com
magistério mal pago e sem estímulos.

Quem viveu no governo Carlos Lacerda se lembra ainda de como o
magistério público do ensino básico era bem considerado, respeitado e
remunerado. Hoje, com a cidade do Rio de Janeiro devastada após a
administração de Leonel Brizola, com suas favelas e seus moradores
entregues ao tráfico e à corrupção, e com a visão equivocada de que
um sistema de ensino depende de prédios e de arquitetos, nunca a
educação dos mais pobres caiu a um nível tão baixo.

Achar que os únicos prejudicados por esta visão populista do processo
educativo são os negros é uma farsa. Não é verdade. Todos os pobres
são prejudicados: os brancos pobres, os negros pobres, os mulatos
pobres, os judeus pobres, os índios pobres!

Quem quiser sanar esta injustiça deve pensar na população pobre do
País, não na cor da pele dos alunos. Tratem de investir de verdade no
ensino público básico. Melhorar o nível do magistério. Retornar aos
cursos normais. Acabar com essa história de exigir diploma de curso
de Pedagogia para ensinar no primeiro grau. Pagar de forma justa aos
professores, de acordo com o grau de dificuldades reais que eles têm
de enfrentar para dar as suas aulas. Nada pode ser sovieticamente
uniformizado. Não dá.

Para aflição nossa, o projeto que o Senado vai discutir é um
barbaridade do ponto de vista constitucional, além de errar o alvo.
Se desejam que os alunos pobres, de todos os matizes, disputem em
condições de igualdade com os ricos, melhorem a qualidade do ensino
público. Economizem os gastos em propaganda. Cortem as mordomias
federais, as estaduais e as municipais. Impeçam a corrupção. Invistam
nos professores e nas escolas públicas de ensino básico.

O exemplo do esporte está aí: já viram algum jovem atleta, corredor,
negro ou não, bem alimentado, bem treinado e bem qualificado,
precisar que lhe dêem distâncias menores e coloquem a fita de chegada
mais perto? É claro que não. É na largada que se consagra a
igualdade. Os pobres precisam de igualdade de condições na largada.
Foi isso o que as minhas normalistas me disseram na festa dos seus 50
anos de magistério! Com elas foi assim.

Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, foi deputada federal
constituinte, secretária de Serviços Sociais no governo Carlos
Lacerda, fundou e presidiu o BNH no governo Castelo Branco.

E-mail: sandra_c@ig. com.br
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